Nordeste, ainda é preciso inventar palavras


 

A região Nordeste do Brasil, nasce enquanto termo na primeira década do século XX, aparecendo pela primeira vez no documento que funda o IOCS (Inspetoria de Obras contra as secas), posteriormente IFOCS (Inspetoria Federal de Obras contra as secas) e DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra as Secas), a apresentar o território que demarcaria as ações do Órgão, marcado no combate às secas. Anteriormente a esse topônimo, Nordeste, tal região era intitulada de forma ampla por Norte, havendo seu contraponto ao Sul, que se iniciava nas Minas Gerais indo até o Rio Grande.

Essa delimitação imposta, Nordeste, trouxe junto a si uma série de elementos que foram se somando no decorrer das primeiras décadas do século XX, montando uma imagética pautada numa singularidade espacial e temporal de uma região, que na verdade é plural nas suas possibilidades de ser.

Em cem anos dessa firmação, segue-se o martelar de estereótipos que caminham em uma só frente, a cantar uma região como campesina, artesanal, marcada por uma só vegetação e clima, por uma única cor e por costumes pautados em um patriarcado, misticismos e violência a próprio punho, dentre outros desenrolares. Enfim, uma sociedade estática, inerte aos dinamismos que o mundo hiperconectado dos últimos cinquenta anos impôs.

Ferindo todo esse alicerce articulado por uma elite (política, econômica e cultural), que tanto lucrou ao longo de um século, e alimentado por tantas vozes (vezes até inconscientes), nas últimas décadas, surgem alguns gritos na busca de amplificação de olhares a esta parcela do Brasil por distintos prismas. E esse é o motivo principal desse debate: o encontro ou reencontro de um Nordeste ainda por ser dito, através, principalmente, das artes deste/neste lugar.

Na década de 1970, o Movimento Armorial de Ariano Suassuna traz alguns debates de encontro de parte do Nordeste em sua identidade já posta, ao confronto com raízes da cultura ibérica, africana e ameríndia, isso por si só trouxe um choque de prismas, ao localizar o debate da obra no cerne humano a influenciar o espaço, e não o contrário. O tropicalismo, anos antes, também trouxe pra debate o Nordeste, embora em segundo plano, interseccionando-o a outras experiências artísticas do mundo. Atitude que mais tarde, diretamente, Alceu Valença, Zé Ramalho, Lula Cortês, Ave Sangria trouxeram com o psicodelismo nordestino, e Belchior e Ednardo em seus cantos e dizeres. E fechando na década de 1990 o Mangue Beat, alicerçando de vez, uma nova forma de ver o Nordeste, nele a partir dele mesmo.

Na literatura, vingaram algumas experiências, embora pouco massivas em relação ao que o campo musical conseguiu. Em 1977, Gilmar de Carvalho, em Fortaleza, publica Parabélum, romance pós-moderno a ler diversas experiências do identitário local a partir do cruzamento de acontecimentos do que no mundo ali se punha: guerra Fria, corrida espacial, revolução cubana, guerrilhas latinas, entre tantas nuances, dinamizando o antes inerte. Ainda no Ceará, José Alcides Pinto, apesar de ainda trazer um Nordeste místico e camponês, vê o sertão a partir das águas, uma possibilidade distante daquele articulado nos romances de 30. A partir da década 1980, nomes como Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito, Maria Valéria Rezende, Cida Pedrosa entre outros mergulham “novas” possibilidades de dizer o Nordeste em seus mais diversos prismas que se somam ao Nordeste ancestral presente no identitário inventado e ofertado que seu próprio povo tomou pra si, experimentos que se expandem nos dias atuais em várias praças da região.

No fim da década de 1990, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr publica A invenção do Nordeste e outras artes, trabalho advindo de seu doutorado, e que traz luz ao debate sobre esse Nordeste imposto de forma explícita e provocadora, apresentando diversos pontos a partir de dados históricos, artísticos, sociais e antropológicos para essa construção de um território, que hoje chamamos amplamente de Nordeste. A partir dos últimos anos, tal obra já rompeu os muros das universidades e ganhou rumos, passando a influenciar trabalhos artísticos que ganharam cena em todo o Brasil, na reivindicação desse debate. O grupo Carmim de Teatro, de Natal, em 2018 estreia o espetáculo A invenção do Nordeste, inspirado no próprio livro, e recebe os maiores prêmios de teatro do país; Juliana Linhares, cantora potiguar, em 2021 lança o álbum Nordeste Ficção, que mais uma vez reforça o debate advindo da obra de Durval; os cineastas paulistanos Daniel Fagundes e Fernanda Vargas, lançam o documentário Oxente, Bixiga!, a contar sobre a influência nordestina na construção do bairro do Bixiga, em São Paulo, desmistificando um olhar unidirecional da história imposta sobre a migração nordestina a partir da segunda metade do século XX; entre outras manifestações em várias vertentes artísticas.

Diante desse trilhar, esse Nordeste inventado, como pontua Durval Muniz em sua obra, de fato passou a existir, e existe (também), mas não só. Como se único, excluiu ao longo das décadas os demais, passando de fresta à totalidade, embrulhando toda a diversidade de Nordestes num único ecoar. Dos outros dizeres, muito ainda se precisa enxergar e até garimpar vistas para a soma de singularidades do que não se pode fechar em conceitos. Que seja um estado geográfico em seus limites. Que seja um estado de ser do povo a se alargar nas suas potencialidades de vida.

Ao Nordeste que nomeiam e nomeamos, ainda é preciso inventar palavras. Inventemo-las.

_

FOTO de DESTAQUE: Pedro Meirelles
(in: http://insightee.com.br/blog/a-imagem-dos-nordestinos-e-do-nordeste-segundo-o-google/)

 

A seguir, o poema, motivo desta escrita:

um possível poema sobre o nordeste do brasil
MAILSON FURTADO

esse seria um poema sobre o nordeste do brasil
mas tudo que sei ainda é depois de amanhã

um homem passeando com a vida
um homem mastigando o dia
um homem duvidando do antes
um homem respondendo à rotina
creio serem cenas de interesse a um poema
sobre o nordeste do brasil

na avenida a passos largos um carro cruza sua via
(os pneus que ficam – estradas sem volta)
vitrines a expor verbos futuros
relâmpagos de sol sucumbem – é meio dia
são outras cenas possíveis
a um poema sobre do nordeste do brasil
(mas que nunca entrará numa antologia publicada no exterior
dedicada ao nordeste do brasil)

amanhã se por acidente o céu debulhar um sereno
furtando tudo o que será notícia nas páginas de jornais
sim! esse será um tema para um poema sobre o nordeste do brasil

e agora tudo o que sei
é que ainda é pouco o que tenho pra dizer de agora
a um poema sobre o nordeste do brasil

não sei onde moram as mesmas casas
das ruas impedidas de norte
nem os livros de desilusão pra esses dias
as máquinas que sujam céu adentro na carne e osso de seu azul –
tenho que as desconsiderar
e enxergar por veredas o mundo
já que as rodagens espatifaram o sertão

tenho de encardir o verde
já que o juazeiro é uma acusação à vida –
nunca permanência
sempre despedida
e
já não sei do que devo lembrar
se de um rio inaugurado pela chuva
ou do mar – o horizonte que há

a vida de homem estampada antes da terra
ou o amanhã antes do ontem
de fato não soa bem
a um poema sobre o nordeste do brasil

esse seria um poema sobre o nordeste do brasil
mas ainda é preciso inventar palavras

 

1 Comentário

Deixe Um Comentário

Nenhum produto no carrinho.

X