Independência ou…? – Provocações (e o trilhar) do fazer independente no Brasil

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TEXTO PUBLICADO NA REVISTA FONTES DOCUMENTAIS. Aracaju, SE, v. 5, 2022 – edição especial – Memória e Resistências: enlaces e entrelaces. Periódico quadrimestral organizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em História das Bibliotecas de Ensino Superior, Instituto Federal de Sergipe (GEPHIBES/IFS). Pags 254-263.

In: https://aplicacoes.ifs.edu.br/periodicos/fontesdocumentais/issue/view/87/62

 

De um curto prelúdio em primeira pessoa

No começo dos anos 2000 descobri a literatura, a escrita, e com isso, o desejo da publicação de um livro. Tudo se passa em Varjota, no sertão norte cearense, cidade curtinha em população e história, lugar sem qualquer histórico literário ou editorial, sem qualquer livraria ou espaço cultural de uso comunitário voltado à leitura, e nunca ali, com exceção de trabalhos acadêmicos com fins de término de curso, ninguém havia publicado algo. E lá estava eu naquele cenário, onde dos meus principais desafios antes de pôr no mundo o tal livro, seria minimamente entender os caminhos para publicação, mesmo sem ninguém para sanar dúvidas. Em informações cá acolá de amigos de amigos, descobri alguns processos. Mas foi na internet que encontrei algumas das tantas possibilidades: os grandes selos e editoras, publicação por médios e pequenos selos, mediante aporte financeiro ou não, e a mais próxima de mim (mesmo que distante), a autopublicação. E assim fui.

Autopublicar-se traz consigo o engajar-se dentro do mercado editorial de uma forma particular, já que o processo de distribuição, divulgação e venda, parte do(a) autor(a) – e isso só soube depois, já dentro de todo o redemoinho: infinitas experimentações, com o caminho construído por ele mesmo (que infelizmente por vezes não acontece), entre erros e acertos, driblando as tantas nuances de um campo já posto há décadas, senão séculos. Assim, descobri o desbravar independente, dependente de tantas questões.

De uma curta pontuação conceitual

O termo independente, diante dos tantos significados, apresenta-se como “aquele(a) que age com autonomia e que não se submete a injunções de ordem econômica, afetiva, moral ou social”[i]. De fato, algumas dessas questões foram e são o mote da construção do mercado ou do ser independente, que dia a dia se amplia com mais autores(as), editoras, espaços, movimentos tomando pra si essa adjetivação.

Generalizar um panorama apenas para o mercado literário é complicado, pois até hoje, muitos dos que se dedicam à literatura, trazem o ofício de escrever geralmente atrelado a outra ocupação. No entanto, é interessante perceber, que antes (até anos 1990), escritores(as), no geral, apenas escreviam. O debulhar de carreira, guiava-se por terceiros, geralmente agentes ou editoras. Hoje, claro que tais profissionais e empresas estão presentes (e cada vez mais estruturadas), mas nada comparada a necessidade de presença solicitada ao autor(a) no cenário social, seja real ou virtual. Desta forma, cada autor(a), desde os(as) presentes em catálogos de grandes editoras, aos(as) que produzem seus livros em gráficas por demanda, até cordelistas que imprimem seus próprios folhetos, são “convidados” a pensarem e repensarem suas atuações dentro do cenário editorial, construindo de forma independente suas próprias trajetórias. Assim, o que seria ser independente hoje? Ou/E, ainda, o que/quem não seria independente?

“Em termos muito gerais, a produção cultural independente será concebida como aquela que está fora – mainstream ora por escolha, ora por condição dos circuitos e mercados massivos; que não adota as lógicas dos grandes conglomerados de cultura e mídia; que se identifica com métodos artesanais de produção, com o experimentalismo estético e/ou com discursividades dissonantes, alternativas, contra-hegemônicas. Ao mesmo tempo que se opõe implicitamente ao dependente (ou seja, aos agentes e às práticas culturais subordinados a tais lógicas), esse produtor se definirá a contrapelo de certos carrascos da dependência –o mercado, as empresas privadas, os grandes conglomerados, as instâncias públicas etc. que controlam a produção, a circulação e a consagração dos bens simbólicos.” (MUNIZ JR., 2016, p. 16).[ii]

Diante dessa provocação, e do conceito abordado por Muniz Jr., para arar o debate, creio importante a abordagem histórica da produção e do mercado editorial do livro no Brasil. Sigamos.

De um tantinho d’história

 O século XIX

Datada de pouco mais de 200 anos, a história do mercado editorial brasileiro (ou no Brasil) é marcada pela chegada da família real em 1808 no Rio de Janeiro com a firmação da Imprensa Régia. Antes disso, há de forma frustrada algumas tentativas nos séculos anteriores da existência de prensas, no entanto combatidas mediante a política portuguesa à produção intelectual nos territórios dominados. Tais fatos ainda hoje ecoam e explicam muitas questões antropológicas de nosso povo. Essa negação à produção intelectual nas colônias, é um dos pontos que diferenciam as dominações lusas das espanholas ou inglesas. Exemplo disso, está na firmação das Universidades. Enquanto a América Espanhola firmou sua primeira, em 1538, na República Dominicana, e até o final do século XVIII, possuía dezenove instituições espalhadas por todo o território, a América Inglesa, no mesmo período, vinte, no Brasil, apenas em 1808, foram criados os primeiros cursos superiores, e apenas no século XX, as primeiras Universidades.

Durante o período imperial, a atividade editorial é secundária. Grande parte da produção está reservada à impressão de documentos oficiais, jornais e panfletos, restrito basicamente ao Rio de Janeiro. A impressão de livros de forma comercial acontece apenas a partir do final do século XIX. Até então a grande parte dos livros é impressa na Europa. No entanto, alguns acontecimentos são fundamentais dentro do Brasil Império para o caminhar do mercado editorial no país. Em 1822, acontece o fim do rigoroso controle da circulação de impressos, o que atrai profissionais estrangeiros, principalmente franceses, nas décadas subsequentes ao mercado insipiente em formação.[iii]  Entre 1840 e 1860 há um aumento de tipografias e livrarias no Rio de Janeiro, estas que atuavam de forma concomitante desde a produção à distribuição. Com a firmação de grandes periódicos, e influenciado pela experiência na França, o romance folhetim ganha adeptos no Brasil, em mais uma experiência de um “francesismo à brasileira”[iv] tão comum à época, o que potencializou uma gama de leitores, e logo mais de escritores a produzirem obras voltadas ao Brasil. Nisso, surgem autores como José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis, entre outros. Os romances que ganhavam sucesso, acabavam por ganhar versão em livro, perenizando-se. Sobre esses romances, cita Lacerda (2018):

o romance-folhetim foi um dos vetores que movimentaram o processo de globalização cultural no contexto da circulação dos impressos no Brasil oitocentista. O romance-folhetim mobilizou dois tipos de interesse em particular, a demanda capitalista e a democracia da informação. […] A expansão da literatura para além dos livros armazenados nas estantes dos gabinetes de leitura, bibliotecas particulares e públicas consolidou uma inovação na prática de leitura, fomentada pela difusão do bem cultural francês e que modificou a relação do público-leitor com os jornais, agregando em certa medida, novos leitores, inclusive os leitores ouvintes.

É importante lembrar que a experiência de leitura na época, estava restrita a uma elite letrada, que pouco passava de 20% da população, e que não tornava a prática de leitura em um ato cotidiano, já que não havia um público leitor representativo, em um recorte apenas das maiores cidades da época. Tal cenário permanece entre oscilações, mas em crescimento, mesmo que mínimo até o início do século XX.

É interessante pensar, que diante do cenário brasileiro do século XIX, com uma classe leitora marcada pelo consumo quase que total por uma literatura estrangeira, a prática de ir na contramão desse panorama, e falar do próprio país, “fundando” de certa forma uma literatura brasileira, é um ato de quebra de paradigma – mote fundamental para o fazer artístico independente. Lotar espaços antes negados para apostar numa arte feita por cá e dita pra cá, mesmo utilizando os meios de produção já postos, não deixa de ser uma afronta, e sem dúvidas, no período, opositores não devam ter faltado.

Diante dessa pontuação sui generis do romance folhetim, como experiência de literatura independente, que pode ser considerada ou não como tal. Outra, vinda dos sertões do Nordeste, é, sem dúvidas, a mais exitosa experiência de publicação independente no país, até hoje viva, mesmo passados quase 130 anos de sua primeira impressão, o folheto de cordel.

Desde o século XVIII já circulavam pelo Brasil, folhetos portugueses a contar narrativas. No entanto, o cordel, como o conhecemos hoje, em estrutura literária e editorial, é uma experiência brasileira, criada, aperfeiçoada e difundida pelo poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, que na última década do século XIX, diante de tipografias no Recife, imprimiu seus primeiros folhetos[v], distribuindo-os sertões adentro. Já nas duas décadas seguintes (1900 e 1910), o folheto de cordel já movimentava uma grande indústria de produção e distribuição em vários pontos do Nordeste.

É interessante observar que o surgimento do mercado da literatura de cordel no fim do século XIX e começo do XX, apresenta inúmeros pontos de análise sobre o fazer literário no Brasil à época, muitos ainda em questão. Distante da capital nacional, já república, o fazer literário produzido no Rio de Janeiro, não conseguia chegar ou mesmo dizer sobre os diversos Brasis. Diante das tantas lacunas, produzir uma literatura que conversasse e traduzisse o próprio povo e lugar, surge como um meio de driblar as carências que o então mercado imposto não conseguia abarcar. Pensando de forma acessível, questões como formatos editoriais, valores, até meios de distribuição. Tipografias especializadas foram criadas, valores pré-estabelecidos que iam desde os sertões da Bahia ao Piauí foram definidos, e criados pontos de venda nas principais cidades da época, onde os folhetos eram distribuídos e de forma osmótica tomavam às feiras livres semanais presentes em cada lugarejo. Mercado ainda hoje ativo, feitas as devidas leituras de tempo e lugar.

Século XX

Seguindo o trilhar histórico, o mercado editorial brasileiro como o conhecemos hoje, estruturou-se em experiências do século XX, principalmente a partir dos anos 1920. É importante citar que já no século XIX, havia em diversas cidades do Brasil, tipografias e livrarias, no entanto, com o mercado editorial ainda bastante centralizado no Sudeste, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo (mais para o final do século), como até hoje. Diante de tantas reestruturações do mercado neste começo de século, cita-se como fundamental a atuação do escritor, editor e crítico Monteiro Lobato no processo de modernização do mercado editorial brasileiro. Com o sucesso de seu livro Urupês, e da extrema precariedade do mercado na época, o autor trouxe contribuições para melhorias das condições do sistema, como o estabelecimento de uma rede de distribuição por todo o país com um malha de contatos que ia de Porto Alegre a Rio Branco.

De 1917 a 1980, o mercado editorial brasileiro cresceu cem vezes[vi]. Amplificação de publicações e casas editoriais, livrarias, bibliotecas e demanda de escolas e universidades por livros didáticos, leis de incentivo à indústria do livro, trazem um tanto dos porquês desta cena. No começo do século, grande parte do mercado dependia de importações, hoje praticamente inexiste qualquer serviço especializado sobre o livro não feito por alguma editora brasileira.

É ao longo do século XX que se firma o cenário como ainda conhecemos hoje: grandes selos editoriais, redes de distribuição e livrarias, entre outras questões, afunilando ainda mais o mercado. Couto cita que “Na década de 1970, a solidez do mercado livreiro avalia-se pelo crescimento das editoras. As livrarias também se expandem em pontos e faturamento, repetindo o que ocorre na década anterior”. Em 1980, com a revolução tecnológica, mudanças na produção gráfica e editorial dos livros produzidos no Brasil, trouxeram pela primeira vez São Paulo para o centro de maior parque gráfico do país, cenário que se amplificou nas últimas décadas, embora com várias frentes na busca de uma descentralização do fazer literário nacional.

Antes um pouco disso, na década de 1960, é importante citar a atuação, na contramão desse fechamento de mercado a poucos nomes, de Massao Ohno, editor e designer paulista, que criou sua própria gráfica-editora, fomentando-a na publicação de novos nomes, principalmente poetas, ainda sem espaço no mercado tradicional no Brasil à época. Ao longo de 50 anos de trabalho, Massao publicou entre 800 e 1000 títulos, principalmente no gênero poesia, abrindo espaço para tantos(as) escritores(as) que logo ingressaram aos espaços do mainstream posto. Em entrevista concedida à Biblioteca Mário de Andrade[vii], em 2009, Massao apresenta como uma das grandes preocupações de seu trabalho, o cuidado gráfico, já que como o mesmo cita, as edições da época careciam muito nessa questão. Falecido em 2010, Massao abriu inúmeras portas ao mercado editorial no Brasil, sendo uma das experiências mais exitosas do que chamamos de editora independente, influenciando uma leva de experiências por todo o Brasil no seguir das décadas.

Ainda por esse período, entre as décadas de 1970 e 1980, surge no Brasil, em vários sítios, o movimento de poesia mimeógrafo ou poesia marginal, inspirado em várias frentes, como a cultura beatnik, o movimento hippie e a tropicália. Em suas publicações reivindicavam espaços, então negados pelo sistema editorial vigente. Junta-se assim, um grupo de jovens com uma poesia desbocada, urbana, combativa à situação política imposta, e produzindo de forma artesanal em aparelhos mimeógrafos, os próprios livretos, distribuídos em eventos articulados pelos mesmos, ou em espaços públicos, como portas de teatros, feiras públicas, entre outras. A mesma provocação feita para o cordel anteriormente, vale para este movimento, que no cerne, buscava o mesmo espaço e a voz negada aos(às) seus(suas), construindo os próprios meios para furar o mercado imposto de forma independente.

É importante salutar a relevância que tais movimentos trazem para o entendimento da literatura bem mais que um conjunto de textos, mas como uma prática preocupada com diversos debates sociais desde gênero, questões étnico-raciais, regionais, etárias, entre outras, a promoverem um encontro de forma o mais verossímil possível de um perfil da literatura brasileira que condiga com a realidade posta na observância das diversas singularidades do país.

O século XX termina com o ápice da centralização do mercado editorial em poucas mãos, reflexo do caminho do liberalismo em todo mundo. É a partir da década de 1990 que surgem as primeiras linhas de livrarias megastores, e o afunilamento cada vezes maior em faturamento por poucas editoras da receita de livros vendidos no país. Em um estudo feito em 2000, Gorini e Castelo Branco,[viii] trazem que no segmento das obras gerais, que representa cerca de 23,9% do faturamento nacional de livros, apenas dez editoras são responsáveis por 70% da receita total, sendo que apenas quatro (Companhia das Letras, Record, Objetiva e Rocco) detêm entre 35% e 40% das receitas do setor. No segmento de didáticos, a concentração é ainda maior. As editoras Saraiva/Atual, Abril/Ática/Scipione e FTD respondem por mais de 70% desse mercado, que é a parcela mais significativa do mercado de livros no Brasil (cerca de 43%).

Século XXI

O século XXI traz consigo novos debates e frentes de ação para o mercado do livro no Brasil, numa busca de uma descentralização “osmótica” do cenário então construído ao longo do século XX, integrando-se a outras praças no mundo, principalmente as da América Latina. Dentre essas:

  1. o fortalecimento de um circuito de eventos literários por todo o país (festas, feiras, mostras, saraus, etc.), que possibilita uma espécie de mercado itinerante perene, transformando o encontro da literatura e leitura para tantos como uma experiência (também) de entretenimento social, principalmente nos interiores.
  2. Passados pouco mais de vinte anos de sua instalação, o modelo de megastores não se sustenta, e hoje assiste o alavancar de linhas-de-livrarias ou livrarias-de-rua voltadas a um cuidado maior de catálogo, abarcando as especialidades de nicho que o mercado atual tanto presa.
  3. Quanto ao parque gráfico, há de forma tímida, uma busca de uma distribuição espacial da indústria, pralém do eixo Rio-São Paulo (paralisadas nos últimos anos de recessão econômica), junto ao incentivo à profissionalização do setor, através de incentivos governamentais e privados.
  4. No entanto, das principais afetações ao mercado do livro nas últimas duas décadas, está a entrada e permanência da internet na vida cotidiana, onde ainda tenta-se entender as suas tantas nuances de construção e volatilidade.

A internet pra além de funções tecnológica, informativa e de encurtamento de distâncias, potencializou aos artistas, de uma forma mais ampla e descentralizada, o acesso à grande parte dos meios de produção, restrito antes apenas à grande indústria. A partir dessa possibilidade, pralém de sua arte, aqueles podem, a partir de então, produzir e distribuir seus próprios trabalhos, tornando-os acessíveis em valores e alcance, ampliando, nessa perspectiva, as ofertas de mercado. Tal prática potencializa e diversifica o mercado varejista, traduzindo um conceito proposto por Chris Anderson (2002) na economia, chamado “cauda longa” – a necessidade de oferta cada vez maior, pra nichos cada vez mais específicos. Nesse pensar, apenas trabalhos independentes conseguem permite-se a tais níveis incertos de experimentação, e assim ganharem o mercado, abarcando-o, diminuindo as interferências ao público, no acesso de tais conteúdos.

Diante dessa possibilidade, a quantidade de trabalhos no modelo de autopublicação cresceu em todo o mundo. Nos Estados Unidos entre 2006 a 2015, mais de 300%.[ix] No Brasil, em 2013, a autopublicação já representava 10% de toda de a produção catalogada[x]. Em 2017, no Censo do Livro Digital, mostrou que apenas 294 da 794 editoras pesquisadas, comercializavam conteúdos digitais, o que condiz dizer que 63% da produção restante estava destinada a conteúdos autopublicáveis (e isso apenas no cenário virtual)[xi]. A presença de espaços como blogs, timelines de rede sociais, plataformas como wattpad, kdp (kindle direct publising), afetaram de forma considerável a produção da literatura independente dos últimos dias. A ampliação dos formatos de consumo de leitura pralém do livro físico, como e-books, audiobooks, appbooks é outra frente. Fortalecendo ainda mais a proposta da autopublicação, vinga o modelo de impressão por demanda, realizada em gráficas rápidas digitais ou mesmo plataformas virtuais como Perse, Bubok, Bookness, que permitem a autores e editores conduzirem suas tiragens de acordo com o que o mercado solicita. Soma-se a isso a potencialização do mercado virtual, que só cresce. Livrarias, editoras a cada dia ampliam seu faturamento através de suas lojas na internet, cenário que se alicerçou ainda mais durante a pandemia da COVID-19, entre os anos de 2020 e 2021.

Fechando os exemplos de experiências de publicação independente, trago uma iniciada das ruas de Buenos Aires, diante da crise econômica argentina por volta de 2002, e hoje presente por toda a América Latina: as publicações cartoneras – publicações produzidas de maneira artesanal, a partir de material reciclado com baixas tiragens, vendidas em espaços e eventos alternativos e internet. Cita Pimentel[xii], sobre estas:

O modelo cartonero ampliou as possibilidades de edição, levando-as a novos autores. Isso faz com que uma das mais potentes máquinas expressivas da sociedade esteja finalmente ao alcance de indivíduos ou grupos que até então dispunham de pouquíssimos recursos e que jamais sonhariam em publicar um livro por uma editora tradicional. […]Nesse contexto de crise, surge uma prática que se difunde rapidamente a partir da proposta de empoderamento dos subalternizados e da ideia de infiltrar a própria condição nas manifestações do pensamento. Sujeitos sociais que antes eram apenas consumidores de bens materiais e imateriais convertem-se em produtores de cultura, numa experiência facilmente replicável, que permite problematizar os modos de pensar a realidade e o próprio fazer artístico.”

Experiências como as publicações cartoneras, os livretos de poesia mimeógrafo, os folhetos de cordel, assim como outras práticas de edições independentes, surgem “para preencher lacunas ainda não descobertas pelo mercado editorial e atender a demanda das pessoas por conteúdos que ainda não foram considerados e desenvolvidos, mas que são necessários e estão fazendo falta nas nossas estantes, livrarias e bibliotecas”,[xiii] e através dessas e outras vias de publicação e difusão do livro, há a promoção da quebra, como cita Regina Dalcastagnè, do “retrato de [nossa] literatura”[xiv], marcado até a última década, como uma prática de uma elite branca, masculina e residente em áreas “privilegiadas” de grandes centros urbanos.

Epílogo?

Assim a partir de todo esse apanhado temporal, retorna-se a provocação inicial, o que seria ser independente hoje? Ou o que não seria? Tal questão surgiu a mim, junto de conversas com amigos de labuta (escritores e editores) sobre a perspectiva de um esgotamento semântico do termo ao longo das últimas décadas. Independente já não responde mais ao que foi a experiência de Massao Ohno nos anos 1960, mesmo a da poesia mimeógrafo uma década depois, ou ao que foi no começo dos anos 2000, com os fanzines, ou mesmo o cordel desde sempre. Brinco que ser escritor independente, depende de muitas coisas, essas, na maioria, pautadas em dribles desconcertantes ao sistema que nos é opressor. E seguimos nisso, mas como nunca antes parte dele.

É interessante observar que dentro de todos os cenários apresentados, e do que temos atualmente sobre o mercado editorial (não apenas do Brasil), o quanto o fazer independente em algumas de suas práticas, é o que consegue traduzir de forma mais contundente esses dias, marcados pelo individualismo (na perspectiva do singularizar para pluralizar), pró-ativismo e instantaneidade do/no tempo-espaço. Do it yourself nunca foi tão necessário!

O sistema lacrado sobre suas próprias ações e convicções, guardião da quase totalidade do faturamento do campo, para manter sua própria sobrevivência, viu (ou foi forçado a ver) a necessidade dessa abertura a outras práticas e vozes. E mesmo sem darmos conta, cá estamos, sendo parte dele. Ou nossas publicações, eventos, espaços que chamamos independentes não movimentam o próprio (mercado)?

Assim, pralém de questões como: quem não seria independente esses dias? Quem poderia se dar esse direito (de não ser)? Surge uma, que vejo necessária aos próximos dias: qual sistema teremos de combater nos próximos anos? O sistema alicerçado sob nossos próprios pés, que tanto e tanto luta-se para ser parte? Precisamos descobrir qual independência buscamos. É difícil afirmar qualquer coisa sobre, mas deixo a hipótese de que tudo passe (ainda) pela perene desconstrução que seguimos. E creio ser um bom caminho. E este só de ida.

Referências

[i]. Dicionário MICHAELIS. In: <https://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em 18/06/2022.

[ii]. MUNIZ JR., José de Souza Muniz. Girafas e bonsais: editores “independentes” na Argentina e no Brasil (1991-2015). Tese (Doutorado em Sociologia) -USP, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-28112016-103559/pt-br.php. Acesso em 20 jul. 2020

[iii]. LACERDA, Danielle Christine Othon. O crescimento do mercado editorial impulsionado pela literatura de folhetim no século XIX. Disponível em <https://www.abphe.org.br/uploads/Encontro_2018/LACERDA.%20O%20CRESCIMENTO%20DO%20MERCADO%20EDITORIAL%20IMPULSIONADO%20PELA%20LITERATURA%20DE%20FOLHETIM%20NO%20S%c3%89CULO%20XIX(1).pdf> Acesso em 18/06/2018.

[iv]. SCHWARCZ, Lília Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 107.

[v]. ALMEIDA, Horácio de. Prefácio de Literatura Popular em Verso Antologia – Tomo II, 1964. In: VIANNA, Arievaldo. Leandro Gomes de Barros – O mestre da Literatura de Cordel – Vida e Obra. Ed. Fundação Sintaf/Queima Bucha. FortalezaCE/MossoróRN, 2014.

[vi]. COUTO, Marina Vargas. A indústria editorial brasileira Trajetória, problemas e panorama atual. UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.

[vii]. Entrevista Massao Ohno – Parte 1/2. Projeto Memória Oral. Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo/SP, 2009, In: <https://www.youtube.com/watch?v=qw25wWzayOk> Acesso em 16/06/2022.

[viii]. GORINI, Ana Paula Fontenelle; CASTELLO BRANCO, Carlos Eduardo. Panorama do Setor Editorial Brasileiro. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, mar. 2000, n. 11, p. 3-26.

[ix]. WALDFOGEL, J., REIMERS, I. Storming the gatekeepers: Digital disintermediation in the market for books. Information Economics and Policy. n 31, 2015. p. 47–58.

[x]. BAEZ, Brenda; SAMPAIO, Jana. Portal Puc-Rio Digital. Com 10% do mercado, autopublicação vira bola da vez. Disponível em <http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=22914&sid=55#.YJltVaFv_IU> Acesso em 10 maio. 2021.

[xi]. JESUS, Thaís Afonso de; BLOTTA, Vitor Souza Lima. Autopublicação digital e inteligência artificial: sobre o uso de ferramentas automação de dados no mercado editorial contemporâneo. Disponível em <https://www.eca.usp.br/acervo/producao-academica/003038393.pdf>

[xii]. PIMENTEL, Ary. Editoras cartoneras e a literatura fora do cânone: um olhar crítico para as margens do mundo editorial. Revista Estudos Literatura Brasileira contemporânea, Brasília, n. 62, e622, 2021. Disponível em < https://www.scielo.br/j/elbc/a/nM6smZqwQGhzgmnkz4PM94S/?lang=pt>

[xiii]. CARNEIRO, Daniele; ROCHA, Juliano. Sobre livros cartoneros: experiências em publicação de livros de papelão. Magnolia Cartonera, Curitiba/PR, 2019.

[xiv]. DALCASTAGNÈ, Regina; DA MATA, Anderson Luís Nunes (Orgs.). Fora do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte. 2012

  1. MORAIS, Leonardo David de. Massao Ohno: editor independente? Gutenberg – Revista de Produção Editorial, Santa Maria, RS, Brasil, v. 1, n. 1, p. 98-116, jan./jun., 2021

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