De Varjota a escrever sua arte à arte a escrever Varjota


 

Uma história de uma sociedade pode ser contada a partir de vários prismas – político, econômico, cultural, entre outros. Aqui, põe-se de pé esta tentativa de desvendar Varjota, pequenina cidade do noroeste cearense, em seu trilhar histórico através de seu movimento e vivências culturais de seu povo e de seus artistas.

Varjota surge como povoado na jusante entre os rios Acaraú e Jatobá, em meados da segunda metade do século XIX, como um distrito da cidade do Ipu, vindo na década de 1920 a vincular-se à recém-cidade de Santa Cruz, atual Reriutaba, mantendo-se até sua emancipação política em 1985. Historicamente, é marcada decisivamente na década de 1950 pela construção da barragem Araras, que inunda o então vilarejo, mudando completamente os rumos de sua população, obrigando-a a migrar para outras locações.

Por quase um século aquela população de sertanejos marcou aquele território com suas vidas, e por conseguinte com suas culturas. Eram famílias que viviam da agricultura e pecuária de subsistência, afetadas pelas agruras das estiagens, e marcada pela influência da igreja católica – um dos motes aglutinadores da cultura do lugar, como na maioria todo o país. Assim, esse primeiro momento cultural de Varjota se alicerça no que chamamos cultura de tradição, através de manifestações de arte popular. Alguns dos poucos relatos presentes em trabalhos historiográficos sobre esse período apontam para a presença de animações em alpendres e terreiros sob o som de bandas de pífanos, rabecas, violas, e manifestações como reisados, festas de São Gonçalo, entremeadas pelo calendário das festas religiosas.

Todo esse período ainda pouco dito e pesquisado sobre o território varjotense, enquanto Vila Varjota, hoje inundada, conceitua-se em sua face cultural, como um momento muito particular da história, visto ser o primeiro encontro do povo com o lugar, com manifestações culturais na busca dessa tradução, com uma arte da memória de tantos povos a se aglutinarem nos sertões adentro.

Com o início das obras do projeto Araras no ano de 1951, há uma mudança completa no modo de vida do lugar nos anos que se seguem. Gente das mais distintas regiões chegam em busca de trabalho, vindas da Serra da Ibipaba, Vale do Jaguaribe, Cariri Paraibano e toda região Norte Cearense, somando mais de uma dezena de milhares de pessoas aos canteiros de obras. O ritmo de vida no lugar muda. As diversas interseções culturais ampliam as possibilidades de relações sociais e culturais, o ir e vir de pessoas, entre outras questões mudam ou criam o jeito de ser do lugar. Em 1958, com a conclusão das obras, muitos desses migrantes ficam e alicerçam a cidade que hoje conhecemos – os primeiros prédios, as primeiras ruas, e também uma nova forma de enxergar aquele antigo campo seco, como um novo mar d’água. Outras vistas. Outro mundo.

Na década de 1960, a energia elétrica se torna possível com a inauguração da Usina Hidrelétrica ao sopé da barragem, e daí outros tantos rumos culturais. O rádio e os primeiros televisores trazem consigo vários sentimentos do mundo mergulhado no pós-Guerra e Guerra Fria, e daí uma imensa revolução de costumes chegam por ali sem qualquer cerimônia.

Varjota ou o Araras (como passou a ser chamada até 1985), em apenas uma década transformou-se de um mero povoado camponês a uma reunião urbana que foi se articulando dia a dia, possibilitada pelas condições trazidas pelas águas barradas do açude. Dentre essas, a feira dominical que torna-se um acontecimento na região, especialmente pela venda do peixe fresco ao longo de todo o ano, fortalecendo-se como um espaço de encontro social e de manifestações artísticas como repentes, teatro de mamulengos, cordelistas, entre outras.

O choque cultural citado anteriormente na década de 1960, entre a cultura de tradição e as manifestações externas (Jazz, Blues, Rock ‘n Roll, Jovem Guarda, Movimento Hippie, etc.) oferta à Varjota um cenário para o desbravamento de artistas em outras manifestações, antes impensáveis no lugar, assim como um fortalecimento das que já existiam (Forrós, Sambas, Choros) montando pela primeira vez uma pequena classe artística no lugar, lotada principalmente no campo musical.

Com a firmação dos grupos educacionais (E. Waldir Leopércio e E. Major Joel Mendonça Furtado), a partir dos anos 1960, articula-se outros movimentos como teatro, dança, artes visuais, que vão se fortalecendo ao longo das décadas e entendendo um tanto do lugar a partir de práticas artísticas. Dentro desse trilhar, o papel da Igreja Católica manteve-se fundamental para o fortalecimento de ações culturais, principalmente voltadas a jovens, assim como de fundamental importância para o alicerçamento de um identitário local.

Antes de prosseguir, um importante adendo:

é complexo, ao longo desse processo, trazer o conceito movimento cultural varjotense para representar toda cultura da cidade, como algo singular e unilateral, visto as diversas nuances que o termo abrange. Assim, restrinjo-me, quando abordar tal termo, a deter-me ao movimento, enquanto prática artística.

Em 1985, enfim a emancipação diante Reriutaba, e por conseguinte, uma nova percepção do lugar a partir desse marco, o que por trinta anos foi Araras, retorna à Varjota – um novo momento de entendimento identitário.

Dentro desse período, as práticas artísticas nas décadas de 1970, 1980 e 1990 foram fundamentais para alicerçar o sentimento de lugar, ainda bastante disperso por conta da curta história da cidade. As primeiras manifestações cênicas, os carnavais, as bandas (que se tornam regionais como Os Brilhantes e Big Som) se firmam, produzindo sua arte lendo o mundo em Varjota, mas não através de Varjota. São grupos de reprodução que no geral não compõem suas peças, mas permitem a abertura de um campo artístico, antes ausente ou raro no lugar. O que foi fundamental para a firmação de outras práticas e percepções no correr dos anos. Quebrando um tanto disso, o carnaval, no fim da década de 1980, mesmo influenciado pelas festas cariocas e pernambucanas, talvez seja o primeiro movimento a trazer Varjota para cena, através de blocos como Os patriarcas e Aquáticos que em suas alegorias buscavam referências locais para compor seus desfiles. Seguindo na década de 1990, impulsionados com o desenrolar das ações das gincanas e jogos escolares já presentes desde a década de 1980, firma-se um primeiro movimento teatral a compor os próprios trabalhos e falarem pela primeira vez de Varjota, onde destacam-se nomes como o de Francisco dos Santos – que por três décadas coordenou o espetáculo A Paixão de Cristo, Ed&Eri – grupo de humor a trazer piadas e causos locais, Francisco Antonio Pires Martins e Grupo Lamparina – a alicerçarem um primeiro esboço de um movimento teatral coletivo que viria a se fortalecer nos anos seguintes.

Este momento da arte varjotense (~1970 até o fim dos anos 1990), marca uma fase fundamental da cultura local, que traz como principal característica, a leitura e apresentação do mundo através da arte em Varjota (em alguns casos, o mundo sendo a própria cidade), mesclando sempre experiências da tradição, como de práticas externas (temporais ou espaciais), que linkam às manifestações vindas nos anos seguintes.

A partir de 2005, começa ou se fortalece uma nova fase da cultura varjotense, marcada principalmente pela politização do fazer artístico local, que permite ao movimento, de forma estruturada, uma consciência sobre a própria prática. Nesse momento, dois grandes acontecimentos levam a história da cultura local a outros caminhos: a diplomação do rabequeiro Antonio Hortensio, como Mestre da Cultura do Ceará, onde pela primeira vez, Varjota é lida e vista externamente por sua arte; e a criação da Secretaria de Cultura, desvinculando-se da pasta da Educação, trazendo à pauta do movimento cultural da cidade, a Gestão pública como parte desse trilhar.

É válido citar que não há um momento de ruptura com o que já se fazia nas décadas anteriores, mas de soma às novas ambições e preocupações, antes ausentes.

Diante disso, o fazer artístico firma-se numa prática coletiva e de cooperação entre artistas, sociedade civil, poder público e iniciativa privada, que promoveu e promove o crescimento em diversas frentes – teatro, dança, música, capoeira, literatura, artes visuais, artes de periferia e da tradição –, em conjunto e em comunhão. Assim, a partir de 2006, há uma articulação para um calendário cultural promovido pelos próprios artistas, que perdura até hoje, firmando ações, formações, pesquisas artísticas, que permitiram a criação de um movimento sustentável nas suas esferas cidadã, simbólica e econômica da cultura.

Grupos como Criando Arte, Alforria e Raça, Luar do Sertão, Dançart, Entrando em Cena, em uma década, passaram pela vida de mais de mil jovens, trazendo à cena, a arte como oportunidade de protagonismo juvenil, somando-se às práticas vindas da escola, e de outras instituições sociais, desde sempre fundamentais.

Com a conscientização política do fazer artístico, surgem pesquisas profundas sobre diversos temas, dentre eles a cidade, que permitiu ao longo da última década um sem-número de trabalhos pautados sobre Varjota, que pela primeira vez articulam motes identitários a partir da arte como parte de um reconhecimento local. Obras de Carlos Dornelles, Renancio Monte, Bimartins, Manoel Augusto, Erasmo PortaVoz, de algumas obras minhas, e de grupos como Saltimbancos, Criando Arte, Dançart, Luar do Sertão, releem Varjota a partir de outras vistas e debulham descobertas do/no lugar por ele mesmo.

Alguns motivos podem ser apontados para essa articulação nas últimas duas décadas:

  1. a massificação da internet, que possibilitou, além da globalização, voz à população aos meios de comunicação, antes inexistente, e por conseguinte, um novo referencial de mundo;
  2. a interiorização da educação, principalmente técnico-superior, que permitiu maiores chances de permanência no lugar, pela criação de novas condições empregatícias, além da possibilidade de conscientização e leitura de mundo a partir do lugar, pela quebra de alienação que a educação promove;
  3. em menor grau, a diminuição de distâncias, com a melhoria de condições de transportes, que possibilitou inúmeros intercâmbios com diversos artistas do Brasil e do Mundo;
  4. e por último, o entendimento de todo o cenário artístico que a cidade já possuía, somando-a a novos desafios.

A partir de todas essas condições, a partir de 2015 novas perspectivas começam a surgir e a somar-se ao trilhar histórico tão firme e rico da prática artística da cidade:

  1. a criação de espaços independentes, somando-se aos institucionais, que permitem pela primeira vez, a realização de circuitos em diversas frentes artísticas;
  2. a publicação de trabalhos acadêmicos e artigos jornalísticos sobre trabalhos e artistas locais, alicerçando um referencial bibliográfico dessas práticas;
  3. através da repercussão de trabalhos artísticos locais, a níveis estaduais e nacionais, como o do prêmio Jabuti de 2018 que conquistei, de trabalhos de Renancio Monte, mestre Antonio Hortensio, CIA Criando Arte, Mailson Paiva, Street Crew, Dançart, Carlos Dornelles, Bimartins, entre outros artistas e grupos, a cidade passa a ser palco de eventos e debates específicos, trazendo público doutras praças pela arte;
  4. e de forma osmótica, todos esses acontecimentos promovem para a população um novo entendimento da cidade, diferente do sempre, ao lê-la através de sua arte, sentindo que ela é parte de todo esse processo, permitindo para a classe artística, uma retroalimentação através de diálogos da arte com ela mesma a partir de outras interseções.

Ao acompanhar todo esse trilhar, vemos que a história é contínua e dinâmica, e que a arte a partir disso amplia vistas e possibilidades de encontros inimagináveis. Em Varjota tudo isso foi possível e continua sendo. Ao longo de mais de um século, a pequena várzea do Acaraú foi palco para tantos artistas encontrarem sua arte, e hoje, essa mesma arte para muitos, torna-se o motivo de encontro com a cidade.

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9 Comentários

  • Carlos Dornelles

    dezembro 20, 2021 - 3:09 pm

    Texto que descreve bem a ideia de movimento cultural de Varjota. Nossa cidade é um grande palco. Parabéns Mailson!
    Viva a Arte e a Cultura de Varjota.

  • Cleide Mara

    dezembro 20, 2021 - 4:57 pm

    Contextualização histórico, político, cultural local maravilhosa, sem dúvidas um documento riquíssimo, com muitas informações importantes, pertinentes e necessárias, muito obrigada por mais esse presente

  • Antonio Martins Rodrigues

    dezembro 20, 2021 - 5:04 pm

    Maravilha de conteúdo meu amigo Mailson, passou um filme aqui na minha cabeça, tantas transições num mesmo cenário cultural. Viva a cultura varjotense! Abraço!

  • Junior Alves

    dezembro 20, 2021 - 7:08 pm

    Interessante abordar as fases do movimento cultural. É um olhar para o futuro sem esquecer as origens.
    Parabéns meu amigo.
    Viva a Arte e a Cultura de Varjota..

  • João Rodrigues

    dezembro 20, 2021 - 7:45 pm

    Este “trilhar reflexivo” de Mailson Furtado mostra não só como se deu e se dá a cultura em Varjota, mas também mostra ser possivel que movimentos artísticos e literários possam acontecer nessas cidades interioranas espalhadas por este Nordeste / Brasil afora. Parabéns pelo texto!!!

  • FRANCISCO AURICELIO BERTOLDO

    dezembro 20, 2021 - 10:16 pm

    Excelente artigo Maílson! Parabéns a você e a td@s os envolvidos nesse processo fantástico que enriqueceu nossa cultura!

  • Erasmo Portavoz

    dezembro 20, 2021 - 11:36 pm

    É muito importante registrar o processo de construção sociocultural dos sujeitos varjotenses!

  • Cumpade Marcos

    dezembro 21, 2021 - 2:50 pm

    É uma sensação única ler um poeta como um historiador. Há muito eu não tinha tanto prazer em uma leitura com datas, fatos e personagens reais; tenho certeza que não foi só pelo meu carinho por Varjota, mas pelo estilo literário do Mailson. Obrigado meu amigo!

  • Nathan Rodrigues Ximenes Furtado

    janeiro 7, 2022 - 1:33 pm

    A identidade que se construiu e é construída nas andanças daqueles que permeiam a cidade e suas artes!! Lindo, Mailson!!

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