Onde mora o lugar que moro?


 

Onde mora o lugar que moro? Foi essa uma das primeiras questões a me perguntar quando dei por conta o meu pensar em sociedade. Sou um sertanejo nato de algumas gerações (de europeus, judeus, negros, ameríndios, caboclos) a se fazerem entre o sopé da Serra da Ibiapaba e o vale do rio Acaraú na zona Norte do Ceará. Este lugar não encontrei na escola, muito menos em livros ou TV, mas ali estava: nas beiras de calçadas, no meio das feiras, nas discussões de meio de rua. Dessa consciência, descobri o desconhecer de minha própria vida. Foi esse o mote pra me adentrar em outros mapas, dos quais só poderia entender através dos caminhos que a arte, e principalmente a poesia, me deram.

Onde mora o sertão? Gustavo Barroso (1962, p. 9) afirma: “nenhuma palavra é mais ligada à história do Brasil e sobretudo à do Nordeste do que esta palavra SERTÃO”. Pero Vaz de Caminha já o rabiscou em sua carta inicial que registrou a terra brasilis em papel passado, e é uma palavra que sempre esteve presente desde os primórdios de nossas experiências literárias, geográficas e sociais, muito antes do que chamamos Brasil. Etimologicamente, o próprio Barroso (1962, p. 11) apresenta a proposição que a palavra derive de um vocábulo antigo africano, mulcetão, a significar amplamente mato, ou aquele lugar que não pode ser nada além do que é. Este termo levou a outros, como celtão e propriamente certão, em português antigo. Câmara Cascudo (1962, p. 697-98) aborda outra possibilidade, essa um tanto mais difundida – a derivação do termo latino desertanu, que simbolizava o lugar aonde desertores eram encaminhados após corrompidos da sociedade, e portanto um lugar à margem e onde pouco se queria estar. As duas vertentes narram um tanto da construção desse conceito, que simboliza, quando se aborda o viés geográfico, o que há de mais profundo e distante. Aurélio Buarque de Holanda (1986, p. 1577) aborda-o pontualmente como: região afastada dos centros urbanos e terras cultivadas; terreno afastado do litoral; a terra e a povoação do interior; o interior do país; e o lugar onde se perduram tradições e costumes antigos. Nessas tantas possibilidades está parte do sertão.

No entanto, tais significados trazem um sertão substancial, com aspectos puramente palpáveis ou objetivos. Mas ele vai além. É um termo lotado de subjetividade e potencial verbal, que é o que há de mais simbólico e poderoso enquanto palavra. Muito dessa conquista, encontra na arte sua descoberta.

Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, toda a geração do romance de 30, Luiz Gonzaga, as cantorias e a poesia popular, indo até João Cabral de Melo Neto e Gerardo de Mello Mourão dão ao sertão esse poder verbal. O encontro com uma condição de ser ao que há de mais interior possível, por vezes distante do consciente, e pincelado em abstrato. Todos esses autores em seus trabalhos, de forma proposital ou não, apontam gritos de existência, tão necessários à sua época. Surgiram e atuaram como denúncia a um país que colocou a escanteio, por séculos, uma região inteira lotada de pessoas negadas a simples possibilidade de viver. Apontam um país profundo. Um pedaço de mundo não-dito ou a se descobrir. Muitas dessas descobertas, mesmo quando tão próximas são distantes, e em grande parte, a arte nos possibilitou tal consciência.

Um contraponto necessário a todo esse pensar sertanejo, que se expande ao conceito Nordeste, guiado há um século pelo menos, é necessário ser feito. Em seu celebrado trabalho A invenção do Nordeste e outras artes, o professor Durval Muniz (2011) nos faz refletir sobre os caminhos negativos que muitas atitudes, posições e discursos políticos, corroborados por muitas dessas obras (creio que, na maioria, sem a busca desse propósito por esses artistas), nos fizeram ganhar estereótipos. Criados tanto externamente, quanto internamente, para uma singularização social, geográfica e cultural de toda uma região, que na verdade são tantas. Tais questões trazem o/ao Nordeste, até esses dias (mesmo na segunda década do século XXI!), uma imagética articulada de um século atrás, a propor quase que exclusivamente uma única região que o represente, e condições que pouco ou só fazem sentido em determinados locais (e quando ainda fazem). Seca, coronelismo, messianismo, cangaço, são tantas dessas imagens que se dizem, a priori, quando falam deste pedaço de Brasil. Replicados a cada dia, inclusive, por seu próprio povo em obras artísticas, no ensino formal, na vida diária e no debulhar midiático. Tudo isso congrega um fortalecimento de um saudosismo infeliz, que não cabe mais nesses dias: o de uma sociedade ortodoxa patriarcal, regida pela violência de próprio punho, escravocrata, puramente folclórica, e negadora do exercer intelectual. Nada desses pontos são representativos, hoje, a estas sociedades dos interiores do Brasil. Este sertão dito, redito e ultrapassado, precisa ser reinventado, analisando sua dinamicidade, distante de provincianismos, que só geram dualidades. Este lugar não pode ser visto, principalmente por sua gente!, como mais ou menos importante que qualquer outro, mas sim de forma ímpar a registrar seu lugar verdadeiro no mundo.

As últimas três décadas foram fundamentais para o encontro de um “novo” sertão, enquanto espaço geográfico e possibilidade de ser. Algumas variáveis explicam esse entendimento: o primeiro acesso amplo da população ao ensino, com a expansão universitária a partir da primeira década dos anos 2000, que possibilitou oportunidades de capacitação intelectual e técnica de toda uma população, antes, sem maiores expectativas, e a possibilidade do pensar o lugar por ele mesmo; a amplificação dos meios de comunicação, com a popularização e o acesso à internet já no começo deste século, a possibilitar voz e valia geográfica aos pequenos lugares do interior, como um legítimo lugar do mundo; a criação e/ou fortalecimento de campos industriais e de serviços, já no fim dos anos 1990, que trouxe oportunidades empregatícias e maior circulação de renda nestes lugares; e a ampliação e estruturação de linhas de transporte, que permitiram a ligação direta deste sertão com todo país, e hoje, com o mundo.

Tais cidades vivem, pulsam e inventam suas próprias velocidades e se descobrem em suas singularidades, linkadas a outras de todo o mundo. Hoje, são lugares que passeiam seu cotidiano em dualidades que se embaralham entre urbano e rural; folclórico e cético; artesanal e industrial; moderno e tradicional; etc. Creio que tais questões não cabem apenas ao interior nordestino, mas à grande maioria das pequenas cidades e localidades interioranas do país. Lugares que ainda precisam ser ditos, pra assim, compreendidos e descorbertos, neste novo cenário temporal.

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