A literatura que convida a (nos) ver


 

Vivemos novos dias (velhos, em muitos sentidos), e desses, apesar dos pesares, temos a festejar a nossa produção literária do/no país ao longo dos últimos anos. Caso não, ao menos enxergá-la num espectro de esperança para esses dias turvos que tentam afundar o Brasil num abismo sem luz, a negar prioritariamente o fazer artístico de seu povo, marginalizando artistas e suas expressões.

Resistir apenas não basta, até pela própria simbologia que esse verbo traz consigo, o de reação, quando na verdade, nunca fomos tão exigidos em pró-atividade. Assim precisamos pralém do resistir, afirmar o EXISTIR, e cá neste campo, o fazer artístico de nossos dias se lotam. Tal existir vem abordar o não-dito de tantos e tantas, a gritar seus espaços de acontecimentos e possibilidades de vida, gritando mesmo com uma literatura escrita ou falada, registrada a partir de hojes e aquis em carne-viva. Há um movimento, embora sem pretensões para sê-lo (acredito), que foi se desbulhando com muita ressonância desde os anos 1990 em vozes como a de Paulo Lins, Ferrez, entre outros, a dizer as periferias das grandes urbes por elas mesmas, e que nos últimos anos (com a mesma amplificação) tomam outros territórios desse país continental a apresentar outras perspectivas de fala, muitas delas historicamente abafadas ou negadas, como a literatura feita por LGTBQI+, por mulheres negras, por indígenas (a partir de suas aldeias), por sertanejos (a partir de suas pequenas cidades e comunidades rurais), por amazônidas, e por todas as demais periferias das pequenas e grandes urbes. Algumas dessas propostas, desde sempre legitimadas pelo público, nos últimos anos alçaram ecos em concursos, prêmios literários, mídia a afirmarem a necessidade (de sempre!) desse grito de existência. Muitos exemplos surgem como Itamar Vieira Jr, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Raimundo Neto, Conceição Evaristo, Edimilson de Almeida Pereira, Maria Valéria Rezende, Luna Vitrolira, entre tantos e tantas.

Há invenção nisso tudo? Talvez em uma ou outra tentativa estética, mas creio que a principal questão são os novos prismas e a visibilidade sempre e antes tão negada ao/à autor/autora que não respondesse, com raras exceções, à construção imagética: homem, branco, heterossexual, residente em bairros nobres das grandes metrópoles e com a maioria (por acaso ou não) distantes do lugar de fala. Assim, na possibilidade de mais ecos, a arte, e em especial, a literatura entoa polifonias, e cá está a lutar por tantos espaços, que não cessam em descobertas.

Todo esse processo não para simplesmente no processo da escrita, mas amplifica-se em outros formatos de encontro à literatura, seja no absorver experiências seculares como os encontros de repentistas nos sertões do Nordeste, a cada dia mais alicerçadas, seja em movimentos que adquiriram novos porquês nas últimas décadas como os saraus, slams e batalhas de rimas com uma força estrondosa principalmente nas grandes urbes. Nesse processo de descentralização de ideias e ações, importante apresentar o aumento dos eventos literários principalmente em cidades do interior a levarem a palavra e a leitura a pessoas que possivelmente não teriam o acesso, caso não houvesse essa intermediação. Para registrar exemplos, na Bahia no ano de 2019 foram em torno de 50 eventos em cidades do interior (feiras, festas, mostras voltadas ao livro e literatura), na Paraíba, mais de 20, e o mesmo exemplo segue em outros estados.

Um acontecimento muito particular nesse 2020 por conta do isolamento social, foi o fenômeno dos eventos virtuais, que os movimentos literários souberam e estão sabendo usufruir muito bem, que afirmam ainda mais o processo de descentralização de vozes, e acredito que se somarão ao que será pradiante, além de um tema com muito pra ser debatido e desvendado.

Por fim, dentro da perspectiva da potencialização de leitores e leitoras a compreenderem a existência de suas realidades, o papel das bibliotecas comunitárias e mediadores/mediadoras de leituras a cada dia se apresentam mais fundamentais para tal entendimento, perenizando tais descobertas. Assim, por meio de todos esses encontros, o convite a enxergar o mundo a partir da literatura cada vez mais próxima e pulsante é também um grito de existência.

 

“Poesia é um exercício
de arrastar coisas vistas
para serem vistas pela primeira vez.”
Dércio Braúna

 

Texto publicado inicialmente do Portal Ver Agora, em 21 de agosto de 2020.

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